Há dias, em conversa nesta varanda, o João olhava
as montanhas, falávamos da vida e da morte, dizendo-lhe eu que ninguém morre
quando quer. Morremos quando tiver de ser e quando Deus quer.
Acredito que ainda pairas por aqui antes de seguir
o teu caminho para a Eternidade e me estás a ouvir, daí que me dirija a ti.
João, deixaste-nos de surpresa. À tua maneira,
rodeado de muita família, entre os teus de sangue e os que foste fazendo ao
longo da vida, os teus amigos. Mas, ainda que não tivesse sido de surpresa, a
tua partida seria sentida como agora: destroçando-nos, partindo-nos,
deixando-nos perdidos. Sim, eu imagino que partiste de bem com a vida, depois
de uma festa onde estavam muitas pessoas da tua família de sangue e amigos
desde sempre!
Não sei se querias partir agora ou se pressentias
que o teu coração não iria aguentar a emoção de ver a família reunida vinda dos
quatro quantos do Mundo para a celebração do 80º aniversário da mana Maria. Mas
partiste. De madrugada. E nós estamos quase todos aqui. Contigo.
Foste sempre, querido João, o esteio de todos nós,
da família no seu oriental conceito de abrangência. Contigo, João, aprendemos
que a família está sempre presente, a amizade é um valor inestimável, os
problemas devem ser sempre resolvidos pela via da conciliação. O valor da
amizade deixaste-o bem impresso no quadro da vida ao manteres a tua velha
amizade de dezenas de anos com o Mari Alkatiri, mesmo que te criticassem ou que
tal parecesse politicamente incorrecto. Não admira assim que o Mari me tenha
dito que eras um amigo ímpar!
Foi contigo, João, que aprendemos a importância de
valores como a tolerância. Soubeste ser tolerante mesmo quando foste
maltratado, ainda quando injustamente te espezinharam na tua dignidade e assim
nos deste o exemplo da importância do perdão. Seguiste as palavras de Jesus
Cristo “Pai, perdoai-lhes, porque eles não sabem o que fazem!”
Nesta hora, querido irmão, lembro-me de quantas
vezes foste injustiçado, incompreendido, insultado! Não obstante, seguiste em
frente defendendo as tuas ideias, as tuas convicções!
Apesar de tão vilmente tratado pelo Estado que
ajudaste a erigir pela tua intervenção na Resistência como foi quando te
retiraram da casa construída sobre os escombros de 1999, tu
mantiveste a calma e não respondeste com a violência! Se bem te recordas, João,
tinhas vindo por uns dias de Seul onde exercias o cargo de Embaixador da
República de Timor-Leste e estavas
justamente a fazer uma das quatro sessões diárias de diálise. Eu vi-os chegar a
tua casa, os diligentes funcionários da Direcção de Terras e Propriedades
acompanhados por alguns situados jornalistas. Não te deram tempo para
explicações nem mesmo foram sensíveis ao teu estado de saúde. E, contudo, João,
se te zangaste, fizeste-o para dentro de ti... ninguém deu por nada! E porque
tu, João, me deste mais uma lição da grandeza do teu coração, não vou ensombrar
o teu caminho.
Tiveste uma vida política que te trouxe muitas
mágoas e algumas alegrias.
Foste líder da UDT que te amou, te respeitou pelo
teu imenso saber, pela tua determinação, pela tua convicção. E valeu a pena, em
nome desse partido, teres defendido Timor mesmo quando os teus bolsos e de
alguns teus companheiros da Resistência estavam vazios e não sabiam como pagar
as vossas contas no estrangeiro... lembro-me bem de uma vez em que ias para
Nova Iorque com onze dólares no bolso. (Ah, João, se nós fôssemos contar essas
histórias, as dificuldades por que
passaste, tu, a Rosinha, a Sandra João e o João Miguel! Se pudéssmos
contar todas as histórias que revelam a grandeza do teu carácter, a tua generosidade, a bondade
desse coração imenso, do tamanho do Mundo! Ah!, João, como me orgulho ouvir a
quem quer que seja dizer-me que tanto estavas bem na mesa do rico como do
pobre!)
Lembro-me que, ainda em
Nova Iorque, pernoitaste num sítio escuso cobrindo-te numa noite enregelada com
um edredon velho e roto.
Lembro-me que, quando se deu o massacre de Santa Cruz,
a Resistência em Sidney organizou uma manifestação de protesto, tu estavas
hospitalizado e “fugiste” do hospital
porque tinhas de estar presente! E ainda não esqueci que ficaste meses sem
telefone porque não tinhas dinheiro para pagar a conta. Aceitavas todas as
chamadas “reverse charge” do interior da Pátria. Lembras-te João?
Mas, apesar de todas as injustiças, as aleivosias
de que foste alvo, de todas as dificuldades, valeu a pena! Porque Timor é
independente e, inquestionavelmente, tu estás ligado a essa independência!
Porque ainda antes de 1974 já tu defendias a independência!
Timor, os seus cheiros, as suas histórias, os
verdes da montanha, o azul do mar, os pássaros que só ouvias na Fazenda, Timor
e as suas gentes, Timor e o seu destino, Timor, Timor, Timor!, preenchiam-te a vida. Por Timor, tu fazias
tudo! Sofreste, ouviste tanta vez chamar-te nomes de que hoje não quero
recordar-me porque não quero ensombrar o teu caminho para a Eternidade,
trabalhaste na limpeza de armazéns...
Fizeste o teu caminho! A direito!
Vamos deixar-te descansar na Fazenda Algarve, terra
onde nasceste e onde procuravas refúgio e, quiçá!, conforto nos maus momentos
da Vida. Jamais as crianças virão para a estrada gritando pelo “ Avô rabuçado”;
jamais juntarás à tua volta os teus amigos da fazenda para lhes proporcionares conversa,
aprenderes e contares histórias e todos rirem; jamais andarás por essas
estradas de Deus partilhando o que contigo levasses; jamais nos telefonarás
desafiando-nos a qualquer hora para um café, dois dedos de conversa, um caldo...
Para estarmos juntos!
Sinto alguma culpa por não te ter ido ver sempre
que me telefonaste. Eu a tentar justificar-me com as minhas obrigações e tu a dizeres-me sempre no fim que “ está
bem!” E, a propósito, lembro-me que ouvi o nosso irmão Mário dizer a um
jornalista que perdemos um irmão que não sabia zangar-se!
Penso agora que tu sabias que ias partir e por isso
tinhas tanta ânsia em falar, ouvir e contar-nos coisas, os teus sonhos – sim,
João, como tu ainda dedicavas tanto tempo aos sonhos! – mostrar o desenho da
casa que ias construir para ti e para a Rosinha...
Sabes, João, tudo isso foi ainda há pouco...
Ainda agora te foste e já dizemos que nos fazes
falta! Quando parte um irmão, vai um pedaço de nós e a nossa alma chora!
Talvez que a razão de teres partido tão cedo tenha
sido porque Deus tenha guardado para ti outra tarefa no céu. O que sabemos,
querido João, é que estarás sempre presente nos nossos corações. Foste um bom
amigo. Foste bom pai, excelente marido, avô extremoso, tio carinhoso. Amaste
todos os teus irmãos. Nenhum de nós esquecerá a tua bondade, o teu carinho, a
tua imensa coragem, a tua determinação, a tua humildade. Tivemos o privilégio
de estar contigo. Temos o imenso orgulho de termos partilhado muitos momentos
da vida contigo, com um Homem como as
pessoas gostam de dizer: um Homem com H grande! Foste um Homem como há poucos,
João! Até sempre!
PS. Li este texto na Missa de corpo presente do João no dia 20 de Fevereiro.